sexta-feira, 12 de julho de 2013

Coralina - a ressaca

Um caminhão inteiro. O maior caminhão que você já viu na vida ou ouviu falar em todas as lendas urbanas. Um caminhão tão grande e tão pesado que jamais passaria pela cabeça da galinha tentar atravessar a rua. Era como se esse caminhão houvesse passado por cima da cabeça de Cora, dado ré, e passado novamente. Ela abriu os olhos para a escuridão turva à sua frente pensando exatamente nessa imagem, a qual era lentamente ofuscada pela da galinha querendo desesperadamente colocar um ovo no meio da rua. E a dor vinha novamente, em ondas compridas e constantes. Ela tentou se concentrar no que havia a sua frente, tentando reconhecer o objeto, o lugar que se encontrava, quem sabe. 09:08. Nove e oito. Nove horas e oito minutos. NOVE HORAS E OITO MINUTOS. Saltou da cama como se a imagem do King Kong viesse à realidade. Calcinha. Sutiã. Calça. Jeans ou social? NÃO IMPORTA. Calça. Blusa. Dentes. Correr. E correu. Os saltos nas mãos, uma maça na mochila e uma escova de cabelo portátil, daquelas de hotel mesmo, no bolso. Quando chegou no hall de seu prédio passou pel'O Porteiro, que mal teve tempo de terminar o seu "Bom dia, Dona Cora..!", que ela respondeu, gritando "Desculpa, é que estou muito atrasada para uma reunião!". E estava. Marcara uma reunião às 0830 com um cliente que supostamente seria muito importante. Ou, pelo menos, como O Chefe havia lhe dito, "o cliente mais importante da empresa". E continuou com um enfático "NÃO SE ATRASE, OUVIU, CORA?". E ela respondeu que sim, embora sempre que ele lhe dirigisse a palavra com algo que não a interessasse, ela responderia que sim. Mas, não perderia a festa de seu melhor amigo, certo? Na verdade, a grande pergunta era como poderia ter ficado tão bêbada? Tomara apenas um coquetel de frutas! Nem sentira o gosto da vodka!

- Cuidado, garota! Quer se matar, é?! – disse um motorista de táxi que quase a atropelara.

Cora se assustou, porém continuou a andar. Havia atravessado a rua sem olhar e, no momento que estava chegando ao outro lado, teve um flash da noite passada e quase ia sendo atropelada. Lembrou do primeiro drink, do seu gosto doce, promissor, d’O Rapaz de Jeans, que a encarava insistentemente, como se fosse um pedaço qualquer de carne, e coçava o saco, como se isso a deixasse animada. Ok, ela não ficaria com O Rapaz de Jeans, mas o faria pensar como se estivesse intensamente interessada em seu olhar, hipnotizada pela sua própria coisificação. Faria exatamente isso, e conseguia até imaginá-lo falando com seus amigos.

- Tá vendo aquela mina ali? Tá na minha, brother. Completamente na minha. – diria com um risinho sacana na cara.

Esperaria atentamente enquanto seu ‘predador’ viesse em sua direção, buscar sua ‘presa’. Claro, tudo isso na cabeça dele. Porque cá entre nós, sabemos exatamente a quem cabe cada um desses papéis, e O Cara de Jeans não era o mais cotado a predador em qualquer situação que fosse. No momento em que ele se atravesse a tentar se aproximar com aquele inexcusável jeito de macho alfa, ela primeiro quebraria suas pernas com um desafinado e histérico grito “Ah, oi, AMIGÃN, tudo bom, LINDA?”, e veria sua expressão mudar para uma perplexidade desconcertante. Depois, continuaria com um “Então, como foi a noite com o BRIAN? Ouvi dizer que vocês ‘botaram pra quebrar’ (aspas incluídas, claro, com direito a uma piscada de olho mal-elaborada)!”, e conforme a expressão dele fosse se tornando mais perdida e as pessoas ao redor começassem a olhar com o sorrisinho de deboche próprio de “pessoas que não têm preconceito, mas...”, terminaria com um – porém, foi interrompida pel’O Melhor Amigo, que já a conhecia há bastante tempo para saber exatamente o que se passava na sua cabeça.

- Cora, meu amor, meu coração, você acha que dá pra passar uma noite sem executar seus planos malignos? – disse, com um falso tom de tranquilidade.

- Não.

- Cora!

- Tá, LINDO, ok. Mas é que você não viu o jeito como ele tava me olhando!

- Vi, querida, eu vi. Mas, não importa, porque ele namora A Dermatose. Olha lá!

Observei enquanto uma loira alta, muito magra, e, aparentemente, desprovida de roupas, pois a garota usava apenas uma das conhecidas saias-cinto, uma blusa folgada, transparente, e um sutiã de bolinhas, agarrava-se ao pescoço d’O Cara de Jeans e lançava a Cora um olhar de lado quase assassino. Isso somente fez com que Cora atentasse ainda mais para o que não conseguia deixar de notar toda vez que olhava em seu rosto: uma ferida no canto esquerdo de sua boca, razão pela qual recebera sua alcunha. Segundo ela, era uma pequena dermatose. Segundo o que eu sei, essa pequena dermatose estava lá desde que eu a vira pela primeira vez, três meses atrás.

- Você acha que foi ele quem passou pra ela, Cora? – disse O Melhor Amigo, com um pequeno tom de veneno, que só nós dois sabemos produzir.

Eu o olhei nos olhos e percebi que a resposta dele era igual à minha: “Claro”. Sorrimos maliciosamente, depois virei para pegar uma bebida.

- Você não vai trabalhar amanhã, Cora?

- Ah, vou! Mas, só mais um drink, que mal faz?

Cora finalmente chegou ao trabalho. Podia imaginar a cara d’O Chefe completamente vermelha, como um pimentão, no momento em que entrasse na sala de conferências. Podia visualizar seu olhar de “Você está demitida” enquanto preparava a apresentação. Isso é, se a deixassem sequer apresentar. Entrou no elevador e olhou para a tela que mostrava o andar e a temperatura do ambiente, apertou o último andar e teve outro flash.

O quinto copo. Quinto? Não, não, o sexto. Seis copos não faziam mal a ninguém, pensava consigo. Avistou O Melhor Amigo do outro lado do apartamento e foi cambaleante na sua direção, para dizer-lhe que ia embora. Nesse momento, percebeu que ele começara a beijar outro rapaz, e desistiu. Afinal, ele estava bem melhor que ela. Foi em direção ao elevador e entrou no cubículo. Quando as portas se fecharam e ela ia apertar o botão “P”, ficou extremamente nauseada e percebeu que necessitava tomar um ar. Então, apertou o botão do último andar, esperando chegar na cobertura. Tirou o salto ainda dentro do elevador e, quando as portas se abriram, subiu mais um lance de escada até chegar ao terraço. Abriu a porta com a boca salivando, esperando sentir o cheiro frio daquela noite tão faltosa.

Cora abriu a porta da sala de conferências com certo temor do que podia encontrar. A sala estava escura e O Cachinhos Dourados terminava sua apresentação em slides. Ótimo. Chegara no momento certo. O Chachinhos Dourados terminou e lhe passou o controle do retroprojetor com uma expressão de desgosto que não hesitou em demonstrar. Eu lhe sorri largamente. O papel de parede de standby do computador era uma grande lua cheia e amarelada que a fez ter outro flash da noite passada.

O vento frio em seu rosto lhe dava tamanha sensação de liberdade que, pela primeira vez em sua vida, amou aquela cidade. A cidade inteira, inclusive seus esgotos, sua obras inacabadas, seu governo inerte e, até mesmo, suas pessoas ignorantes. Amou todos eles enquanto rodopiava no topo de um prédio de vinte e três andares. Queria mais. Aproximou-se da borda da cobertura. Queria ver quão pequenas e ínfimas os transeuntes eram daquela altura. Sentou-se à borda despreocupadamente. Nada poderia dar errado em uma noite tão bonita, com uma lua tão linda... Lua cheia, luas dos amantes, pensou. Bullshit. Mostrou o cotoco para a lua como se ela fosse se sentir ameaçada e secar para minguante. Nada aconteceu, mas não importava, pois na sua cabeça ela não era mais cheia. Era minguante e ponto. Ficou um pouco tonta e retornou a mão para a borda, de forma a se equilibrar, mas sua mão escorregou no concreto molhado e ela acabou batendo o queixo com força na mureta. Não conseguia se mexer, mas via as luzes da cidade abaixo de si e percebia que seu corpo se movia lentamente em sua direção. Fechou os olhos e viu em sua cabeça a cena em que caía em cima do carro mais próximo da entrada do prédio, no térreo. Viu os vidros se estilhaçando, viu as pessoas gritando, viu tudo como se acompanhasse uma cena de filme na TV. No entanto, não sentiu mais nada.
Terminou a apresentação suando frio. Como sobrevivera? Como podia estar ali naquele momento? Será que... não estava ali? Será que tudo aquilo era um sonho? Será que ela realmente estava morta e o após-a-morte era apenas uma grande pegadinha do que você poderia ter vivido, mas não viveu, estando consciente (ou numa constante incerteza) do fato de estar morta? Acenderam as luzes e ela descobriu o olhar d’O Cliente, um olhar astuto, de quem sabe o que está fazendo. Ela também notou, apesar das mechas de cabelo tentarem esconder, olhos verdes que a analisavam. Ela já estava nervosa, mas aquele olhar a fazia tremer de outra forma, em outras partes. Ele levantou e foi em sua direção enquanto O Chefe conversava com os acompanhantes d’O Cliente.

- Tudo bem? – ele disse, em uma voz calma e relaxante.

- Ah.. sim.. – “agora, sim”, pensei comigo.

- É que você meio que ia perdendo o controle por um momento.

Empalideci. Anos e anos de máscaras e disfarces e, em apenas trinta minutos de apresentação, aquele rapaz, aquele estranho, era capaz de dizer o que eu estava sentindo? Eu deveria realmente ter morrido, porque isso não aconteceria comigo, jamais. Afastei qualquer pensamento de insegurança da cabeça, enchi o peito de ar e lhe respondi em uma voz de atendente de marketing.

- Não, Senhor! Eu jamais perderia o controle. Sou uma das funcionárias mais competentes da empresa! É só perguntar a’O Chefe! – quase gritei, numa falsa empolgação. O Chefe se limitou a me sorrir um sorriso de “temos que conversar”.

O Olhos Verdes demonstrava uma expressão de curiosidade e tristeza. Melancolia, talvez. Cora não sabia explicar direito, mas era uma expressão que podia ser facilmente confundida com pena. E Cora não era o tipo de garota que você deveria depositar pena. Ela acreditava nisso veementemente.

- Então, Senhor, tem algo mais que eu possa lhe ajudar, alguma dúvida que eu possa lhe tirar? – eu continuei, em um tom beirando a impaciência, querendo sair daquela situação o quanto antes para ir ao encontro d'O Melhor Amigo e tentar descobrir o que lhe acontecera.

Ele apenas me analisava e, no último momento antes de estender a mão para me cumprimentar, pude perceber que tentava esconder um sorriso quase... reptiliano. Ou quem sabe eram seus lábios finos e vermelh.. Não. Não importa. Era apenas um cliente. O Olhos Verdes era apenas um cliente.

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