quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Coralina segurou firmemente no trinco da porta, mas pareceu que todas as suas forças lhe deixaram, ali, naquele momento. Ela não entendia muito bem o que acontecia com seu corpo, mas parecia que ele era puxado cada vez mais para dentro de casa, pro interior de seu quarto. Foi aí que se recolheu à cama e voltou a dormir. Lá era mais seguro.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Dos amores de mulher I existe uma fábula que é repassada de ouvido a ouvido, há muito tempo, de que uma das mais belas mulheres se jogara do penhasco de uma ilha aspirando o amor de seu amado pirata que a abandonara. piedosa, afrodite intercedeu em seu favor e lhe deu guelras no lugar do pescoço, bem como uma cauda no lugar das pernas. a mulher, chorosa, não entendeu sua transformação e e perguntou a afrodite: - por quê, minha senhora? por quê me livrastes do sono eterno? tudo que eu queria era me juntar ao meu amado... afrodite, cada vez mais compadecida, jurou à criança que a guiaria até o seu homem. dias passaram pelos mares, até se aproximarem do próximo continente. lá, ele estava rodeado por dois garotos e recebia o mais tenro beijo de uma estranha que não era ela. inconformada, a mulher jurou a afrodite que o faria pagar, por tê-la feito esperar, por tê-la feito amar alguém bem mais que a si própria. afrodite, então, escarneceu. - não, minha criança. a culpa não é de quem se fez amar, mas de quem ama. não deve você culpar os outros pelas decisões que tomou. trouxe-te aqui para ver que seu amado se encontra feliz, e que segue com sua vida, justamente para que você possa fazer o mesmo! nesse momento, o homem se dirigiu ao navio e preparou-se para partir. - vem, criança. levar-te-ei de volta à casa e te embalarei no sono dos deuses. dar-te-ei qualquer homem que desejar e te levarei aos confins do maior palácio da terra, se assim quiser. apenas desista desse amor que não te corresponde. é essa a prova que lhe faço. a mulher olhou enquanto o homem se distanciava mar adentro em seu navio. observou, então, sua cauda. tocou suas guelras com as pontas dos dedos, e percebeu que se realmente quisesse passar a eternidade ao lado dele, jamais poderia desistir desse dom. olhou afrodite como uma mera pecadora, virou-lhe as costas e nadou. nadou. nadou. em direção ao navio. afrodite, irresignada, não sabia como responder aquele sentimento. humanos e suas emoções eram coisas que ela jamais seria capaz de compreender e eram justamente esses momentos que a faziam perceber isso. - ouviu, Cora? foi assim que nasceu a primeira sereia. apenas uma mulher que se perdeu no mar em busca de um amor que jamais alcançaria. - mas, papai, essa não é a estória da pequena sereia... - não, minha filha, essa é a estória de uma mulher que amou demais alguém, porém não se amou o suficiente para continuar com a própria vida. - mas não é uma fábula? - sim, meu amor. - então, qual a moral? - hahahaahh. minha querida, a moral é que você tem que amar, intensamente, profundamente, até os confins de si, mas sem jamais perder a noção de amor-próprio. - mas, papai, eu não entendo... - não se preocupe, minha querida. você é mulher. está fadada a escolher em determinado momento. porque os homens têm coração frio, e você, meu amor... você nasceu com um coração puro e pronto para sofrer. - ãhn? - nada, querida. durma. durma e sonhe com o reino de atlantis. você vai precisar.

sábado, 19 de outubro de 2013

amor de pai

Cora, minha querida, apazigue seu coraçao. como já dizia Carlos, hoje beija, amanha nao beija, depois de amanha é domingo e e segunda feira ninguém sabe o que será. entao, sossegue, meu amor. de nada importa essa angústia sufocante a que te prendes. nenhum proveito lhe trará se agarrar a esse amor que tanto te rejeita. entao, meu amor, chora. chora esse desgaste pra longe do seu coraçao. porque quando um sabe, e o outro se queixa, é porque nao é pra ser. é porque tem algo melhor que lhe é guardado. nao, nao é o fim do mundo. eu sei que parece, mas nunca é. é mais um coraçao partido. é mais um musculo reforçado. cria asas, Cora. cria asas e procura aquele que vai te amar aos confins, porque Ele está lá, porque Ele está te esperando, e eu também estarei lá, minha criança, aguardando ansiosamente que voce concretize esse seu sonho de família própria. sê, vê, crê, que se realizará. mas sonha. sonha bem alto. seja Ícaro em toda a sua confiança, e jamais deixe esse seu jeito doce de amar, porque é essa sua candura que fará com que Ele saiba que é você a responsável pela felicidade d'Ele, e que uma existência sem você é algo sem sentido. nao, criança. sei que você crê estar vivendo esse momento agora, mas és tao jovem. antes de se perceber, estará entregando teu coraçao a outro, que pode ser Ele, pode nao ser. a vida tem dessas mesmo. o que resta é paciência, e muita ânsia de amar.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

There is no more music playing in my heart There is no more smile dancing in my lips There is no more will to chase my dreams There is only the blank space you left behind

domingo, 15 de setembro de 2013

Coralina - rabiscos d'O Divórcio.

da primeira vez que te vi eu sabia que era tua mas ainda assim insisti em manter minha compostura da segunda vez que te notei decidi tomar-lhe nos braços levar-te prum lugar só meu e definir nossos laços da terceira vez que te reparei fui delineando as diferenças entre quem um dia amei e o fruto das desavenças da última vez que te senti não mais te reconheci da boca, o gosto mudou do cheiro, dissipou dos olhos... ah, se um dia eu tivesse teus olhos aqueles olhos para me olhar eternamente e aquecer meu coração como na primeira que te vi.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Coralina - Aos doze

Cora segurou o copo gentilmente com a mão esquerda. Era um das velhas manias que tinha. Era destra, mas tinha para si que se utilizasse sua mão esquerda, traria mais sorte, pois tudo que era torto e diferente, na sua cabeça, era melhor e mais bonito. Concepções de uma garota de 12 anos que cresceu com um pai ausente e uma mãe controladora. Mas, não importava, porque estava levando um copo de água gelada para A Avó Doce, que, apesar de amorosa, era ao mesmo tempo incapacitada de demonstrar carinho normalmente. A vida lhe tinha sido muito dura. Aos poucos, aprendera a receber, mas dar carinho... não, isso ainda era muito improvável de se acontecer nessa vida. Era perigoso demais.

A Avó Doce recebera o copo gelado com um sorriso triste, porém acolhedor. Um sorriso marcado, sabe? De quem sabe como é A Dor, e do que Ela é capaz. Não que A sentisse agora, mas porque sabia que Ela não tardava, e sempre era dura.

Coralina sorriu em resposta e deitou na rede próxima à d'A Avó Doce. Começou, então, suas viagens infantis. No primeiro balanço, sonhou que era uma guerreira. Sonhou acordada que podia invocar elementos e criaturas místicas para lutar contra forças ulteriores, forças do próprio mundo real, forças que mais tarde viriam lhe afligir de outra forma. No segundo balanço, percebeu que A Avó Doce cochilava, e com seus suspiros sonolentos, ela divagou para uma terra desconhecida, uma terra de sonhos e possibilidades, onde o mundo se entortava ao seu querer. Dessa vez, não estava mais acordada.

Cora caminhou por pastos verdes, e sentiu em sua pele o vento orvalhado da manhã, embora o sol lhe demonstrasse ser fim de tarde. Pulou em direção às nuvens e nadou pelos rios dos três céus com os anjos, até que escureceu, e tudo desapareceu, e só restou ela, em sua medíocre insignificância, diante d'A Solidão. Sabia que estava sonhando, sentia que seu corpo continuava parado, na rede, mas não conseguia mais controlar o espaço conforme seus desejos. Fechou os olhos e se esforçou, tentando acordar, mas nada acontecera. Foi quando lhe surgiu uma serpente. Asquerosa, enorme, sibilante, serpente. Ela levantou o corpo à altura só rosto de Cora e as duas se encararam. Cora contemplou sua cor avermelhada e seu colarinho negro próximo ao que corresponderia ao seu pescoço (se serpentes possuíssem pescoço).

- O que você quer? - Cora indagou, em uma voz trêmula, como se o simples fato de indagá-la a fizesse atacar.

A serpente apertou os olhos, em desdém. Cora tentou se retrair, mas seu corpo ainda continuava paralisado.

- A pergunta, garotinha, não é o que EU quero, mas o que VOCÊ quer.

Cora, confusa, tentou compreender o significado da frase, mas não tivera muito tempo até o animal se aproximar de sua perna esquerda e ir subindo e se enroscando e sibilando e ameaçando, até que, de repente, não lhe podia mais ver a cabeça, apenas o corpo vermelho como o céu das manhãs de verão enroscado em sua perna. Finalmente, a serpente se enroscou em seu pescoço e lhe encarou, mais perto que nunca. Cora não podia mais falar, respirar, se mexer ou sequer pensar, pois o medo lhe tomara e ela só conseguia ver os olhos da criatura.

- Então, criança, diga-me, qual a sua decisão? - sibilou a serpente, em uma voz tediosa, enquanto lhe apertava cada vez mais o corpo.

- Mas... o quê? - reuniu forças para perguntar.

Impaciente, a serpente lhe mostrou as presas e assumiu posição de bote. Estava ficando ainda mais vermelha, e o medo de Cora apenas aumentava. Fechou, então, os olhos, sem saber a que se referia a criatura, e apenas assentiu, resignada, ao que quer que fosse.

Nesse momento, o animal apertou ainda mais o seu corpo e, rapidamente, abocanhou seu ventre e começou a lhe rasgar a carne, a lhe fluir o sangue, junto a seu veneno impuro. No entanto, Cora não sentia dor. Pelo contrário, estava extasiada. O prazer lhe corroía os sentidos. Não sabia o porquê, mas se entregava à serpete como se fosse a única coisa que lhe importasse naquele momento. O calor lhe tomava e se expandia para além de seu corpo, para além do corpo da criatura, até os limites do sonho. Ofegante, viu marcado em sua pele, ao longo de sua perna, como tatuagem, os resquícios da serpente. Só que não estava mais no plano dos sonhos. Era seu corpo. Era sua realidade, e percebia tudo diferente ao seu redor. Na verdade, tudo estava igual, porém diferente. Era quente. A serpente dentro de si ansiava e sibilava, podia sentir perfeitamente. Era sua cúmplice.


Ao olhar para a rede ao seu lado, A Avó Doce continuava deitada, mas não emitia qualquer com. Cora a percebeu diferente. Levantou-se, observou sua silhueta, e viu, Ela, em toda a sua Sabedoria, A Matriarca de sua família, e ao seu lado a Dama das Damas, em seu longo vestido negro, a levar A Matriarca para longe. Cora lhe olhou nos olhos, Ela lhe sorriu, mas Cora nunca esteve tão amedrontada em sua existência. Cora assentiu e se despediu d'A Matriarca.

sábado, 3 de agosto de 2013

Desde criança, Coralina nunca fora uma boa dançarina. Muito cedo, sua mãe lutara contra seus calcanhares diversas batalhas, mas no momento em que chegava o dia da apresentação, eles simplesmente se recusavam a trabalhar. Ah, sim: sua mãe era bailarina. Então, não importava quantos pliés fizesse, ou quantos rodopios desse, nunca eram (seriam) suficientes.
Hoje, depois de tantos anos almejando a liberdade, Cora faria dezoito às 21:12 (leia-se vinte-e-uma-hora-e-doze-minutos, a.k.a., a hora mais esperada de sua vida, uma vez que acordara às cinco. Sim, cinco-da-manhã).  Tinha apenas uma certeza, às 21:12:01 estaria pondo o pé fora de casa para não mais voltar.
Porém, sua mãe preparara uma surpresa, nesse dia, às 21:00: uma apresentação. Claro, ela não poderia deixar de estar sob a luz dos holofotes, nem mesmo no dia do aniversário de sua filha, principalmente nesse dia. Então, Cora tomara uma decisão: enquanto tu vens às 21:00, eu já terei ido há muito. Chegou em casa, juntou seus pertences, o dinheiro que guardara durante tantos anos, e parou, em frente à porta, prestes a fazer a melhor ou a pior decisão de toda a sua vida.
Para que entendam, é melhor contextualizar um pouco. Sua casa era normal, não lhe faltava nada, ia à escola, entrara na universidade há pouco, porém a velha era um INFERNO. Assim, MESMO. Tanto, que seu pai abandonara as duas há muito e toda a família já havia se intrigado com ela, deixando Cora sozinha com esse martírio, o martírio de ser sua filha. “Cora, meu amor, você pode lavar os pratos, por favor?! Eu vou subindo com o Daniel, porque o jantar que você preparou nos deixou muito cheios.”, “Cora, minha linda, você pode lavar meus vestidos? Eu sei que só o que está sujo é o que usei para ir ao baile da prefeitura ontem, mas amanhã tem um na casa do governador, e eu ainda não decidi qual usar! Todos devem estar cheirosos, caso eu escolha um em cima da hora, não acha?”, “Cora, você pode lavar o banheiro?”, “Cora, arrume meu quarto.”, “Cora, lave as cuecas do Carlos!”. Cora, se manda.
Da janela da porta podia ver o vizinho novo da frente jogando baseball com seu irmão mais novo. Estrangeiros. Era só o que essa maldita cidade precisava, estrangeiros tomando de conta do espaço. Respirou fundo, pôs a mão na maçaneta, e girou. A vida começa... agora.
Nesse momento, ela viu que o mundo se movia em câmera lenta. Por algum motivo, ela sentia que a bola ia em sua direção, mas não podia fazer nada, era tarde demais. Sentiu uma pancada e apagou.
Quando acordou, a cara de sua mãe era tudo que conseguia ver. Inferno, devia estar no inferno. Vai ver que o negócio de honrar pai e mãe realmente era verdade. A garganta apertou, e não se segurou: vomitou todo o almoço. Na cara de sua mãe.
- AHHHHHHHHHHHHHHHH! – gritou histericamente em uma voz fina e irritante.
Cora se levantou devagar e viu que várias pessoas bem vestidas a observavam, com olhares preocupados. Sua bolsa. ONDE ESTAVA SUA BOLSA? TODO O DINHEIRO ESTAVA LÁ. Se virou e viu que a bolsa estava perto de si. Agarrou-se a ela com as forças que tinha, tentando entender o que se passara. Foi aí que lembrou da bolsa de baseball. Sua mãe continuava com o drama, como se houvesse ácido correndo sua carne, e Marcos, seu mais novo namorado que constantemente estava esbarrando sua mão na bunda de Cora, começou a lhe alisar o rosto e perguntar se ela estava bem. Cora somente assentiu com a cabeça, sentindo agora a dor latejante em sua têmpora esquerda.
Quando sua mãe finalmente parou de gritar e lavou o rosto, Cora já estava na sala de estar (ainda firmemente agarrada à sua bolsa), com todos os outros convidados. Eles pareciam muito tensos, desconcertados, Cora pensou que eles não deveriam saber se lhe chamavam uma ambulância ou lhe davam parabéns.
- Então, meu amor, você está melhor? Eu já posso me aproximar de você? Tem certeza que não vai mais vomitar? – disse sua mãe, em um tom de desgosto.
Cora a olhou, sem conseguir esconder a pena. Uma mulher tão medíocre, tão mesquinha, que jamais seria capaz de encontrar a felicidade. Assentiu com a cabeça, e a cena começou.
- Ó, minha querida, eu estava tão preocupada! Você não consegue imaginar o meu sofrimento quando cheguei e vi meu bebê caído no chão, inconsciente. Quase caio eu, junto de você! – recitou, dramaticamente, como se tivesse pensado bastante no que diria quando me encontrou, antes de chamar qualquer ajuda. Os convidados pareciam gostar do show, e ela regozijava. Eu, que não tenho paciência, desvencilhei-me de seus braços e me levantei, um pouco cambaleante, sendo amparada por Marcos, mas recuperando o equilíbrio logo após e puxando meu braço de suas mãos.
- Eu estou bem, Valdelice. Mas, tenho que sair, agora. Tchau.
Nesse momento, a mãe a puxou pelo braço e lhe fixou o olhar.
- Acho melhor você se sentar, Cora. Vai ter uma apresentação e...
- Não, Valdelice, eu não terei tempo pra ver a apresentação. – cortei, resoluta.
- Mas, minha querida! Você não precisa se preocupar. Já guardei todas as roupas sujas que você tinha nessa mochila. Você tem todo o tempo do mundo. – ela sorriu, maliciosamente, e eu embranqueci. Minhas mãos correram para minha mochila e eu pude sentir, em minha alma: vazio. Meus olhos se encheram de lágrimas, e ela continuou – Porque você não sobe e põe seu collant, todos estão ansiosos para ver você dançar. – o golpe de misericórdia. Eu subi rapidamente, para que ninguém visse as lágrimas que escorriam involuntariamente.
Cada peça do collant que eu vestia me lembrava de diversos recitais que ela me inscrevera contra minha vontade e me fazia ranger os dentes de ódio que se acumulava. No fim, as sapatilhas. As sapatilhas que ela usara em sua última peça, quando caiu e danificou um tendão. Deu-me de presente no dia da minha primeira apresentação. Amarrei os laços e desci, pisando firme, meus calcanhares já travando. Ao chegar na sala de estar, todos já estavam acomodados, e Valdelice esta vestida, também.
- Vamos, minha querida. Hoje você é uma mulher. Hoje, sua mãe lhe ensinará a última lição. Uma lição que só pode ser ensinada por meio da dança. Uma lição sobre o mundo. – disse, com um olhar frio.



Uma lição sobre o mundo?! Por favor, aquela vadia vinha me atormentando durante anos e agora queria me ensinar uma lição sobre o mundo me humilhando na frente de todos os seus amigos e me rebaixando em público. POIS QUE SE FODA. Eu tinha uma coisa ou duas que sempre quis ensinar a ela, e estava preparada pra isso.
Fiquei em frente ao espelho da sala para ajeitar meus cabelos. Cachos são sempre difíceis de se lidar na dança. Eles insistem em não lhe obedecer. Prendi-os da melhor forma que pude e me preparei. Quando a música começou a tocar, eu percebi: era o seu número. O número que ela passara quase trinta anos dançando. Fuck. Mas, não importa. Eu já estava nessa, eu daria meu melhor.
Ela fez a primeira sequência de movimentos. Plié. Rodopio. Rodopio. Plié encarpado. Era agora. Tentei sentir meus calcanhares, mas não os sentia. Isso não era bom. Não mesmo. Todos me observavam. Eu ficava cada vez mais nervosa. A música continuava. Meu momento passaria se eu apenas não me movesse, e logo. Lembrei de minha primeira apresentação. O nervosismo, as pessoas analisando cada músculo do meu corpo, o sorriso malicioso no olhar de minha mãe. Fechei os olhos. Escutei meu corpo. Minhas circulações. Meu coração. Tudo estava em um ritmo único, só meu... mas, havia algo mais. Era música! Era a música! Um violino chorou em meu ouvido esquerdo e meus braços lhe responderam abrindo as asas. Um violoncelo sussurrou em meu ouvido direito, e minhas pernas lhe responderam com uma contração simultânea. Plié. Quando o piano iniciou a chamar meu nome, todo o meu corpo se contorceu e se desdobrou com seu chamado, liberando uma energia que a fez rodar, em êxtase. Rodopio. E, assim continuou. A cada instrumento, seu novo chamado, um movimento quase calculado. Ela dançou todo o número de olhos fechados e, quando finalmente os abriu, percebeu que todos a encaravam, boquiabertos. Ela estava calma, centrada na última pose, sem mover um músculo, e demonstrando uma paz em seus olhos que quase a colocavam em um outro plano. A música havia parado. Tudo havia permanecido imóvel. Era como se ninguém respirasse no recinto. Não via sua mãe. Ela não importava agora, pois o centro dos pensamentos de todas aquelas pessoas era ela, Coralina, a mulher. Desfez a pose e fez reverência, em agradecimento a seus expectadores. O mundo voltou a se mover. Todos aplaudiram e assobiaram como se tivessem acabado de testemunhar uma apresentação da sua grande inspiração, Svetlana Zakharova, a estrela do ballet Bolshoi.

Cora sorriu. Sua mãe não movera um músculo ainda. O vinil d’O Corsário continuava rodando na vitrola, mudo, assim como Valdelice.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Expectativa. Toda noite era cheia de expectativas e esperanças e desejos quase sempre não correspondidos ao final, mas que era o que a movia. Dezesseis anos, e tudo que queria era ficar ali, estável, naquela constante energia de ir para a escola, fingir aprender, fingir socializar, deixar tudo pra trás, se perder nas ruas e becos daquela cidade tão quente para encontrar seus amigos em qualquer casa abandonada e relaxar ao som de Crystal Castles, enquanto experimentava a nova mistura de João.

João era um cara legal. Muito inteligente, mas daquelas inteligências peculiares, para fazer coisas erradas, digamos. Ele não trabalhava, nem estudava, morava com sua mãe, que trabalhava à noite nas ruas da Beira-mar e dormia o resto do dia. João tinha apenas um talento: misturas. Não sei como, mas ele conseguia pegar qualquer droga e misturar de formas loucas que potencializavam o efeito da forma como ele quisesse. Graças a ele, tive a melhor trip da minha vida com ácido modificado. Sou grata até hoje.

- Eae, John! Beleza? - eu disse em tom jocoso.

Ele me olhou das pernas até os seios (ele sempre parava nos meios seios por um milésimo de segundo... ou dois, rs), sorriu um sorriso sacana e, ao pegar minha mão, puxou-me para si:

- Diga lá, Cora! Não vai me dar um beijinho de boas-vindas, não?

Ele tinha acabado de voltar. De onde? Ninguém nunca sabe ao certo. Ele sempre sumia por alguns dias, às vezes semanas (era a época em que nos concentrávamos nos estudos, dependendo da sua definição de concentrar), e sempre voltava com coisas muito boas para que nos divertíssemos. Mas, eu não dava mole. Não para ele. Apesar de gostar dos seus bagulhos, eu não gostava dos seus bagulhos, se bem me entendem.

-Quê isso, brother?! Já pode ir me largando, viu?! Ou você quer que eu fale pro Augusto? - eu levantei a voz, de modo a demonstrar minha seriedade.

João apertou os olhos e fechou a expressão. Augusto era meu poder. Augusto era minha propriedade. Era ele quem "fornecia" para João, e era ele quem não deixava um homem sequer me tocar (pelo menos que ele soubesse). Pode parecer o inverso, que eu sou apenas uma de suas vadias, e que eu faria qualquer coisa pra cheirar o que quer que ele me trouxesse. Mas, não. Eu não transava com ele. Apenas isso. Sim, eu ainda era virgem. Ou pelo menos era o que dizia pra ele.

- Cara, pra quê essas agressividade? Eu tô só pedindo uma recepção de boas-vindas... - ele falou, largando-me e baixando a voz.

Eu me aproximei de seu rosto, dessa vez, e lhe segurei o queixo com a mão direita.

- Eu te conheço, John. Se eu desse espaço pra te dar boas vindas, você provavelmente já estaria tentando enfiar a mão dentro do meu short. - eu disse em uma expressão séria.

Ele sorriu, canalha, e ficou calado. Eu sorri, deitei-me num sofá velho que tinha na sala, e mudei para um tom mais alegre, extático.

- Então, me diz, coelhinho da páscoa, o que trazes pra mim?

Ele continuou sorrindo, levantou-se, veio em minha direção, encarando-me, chegou perto do meu rosto, levantou a blusa com a mão esquerda, mostrando... não, exibindo seu tanquinho musculoso, macio e branco, pôs a mão direita dentro da calça (eu continuava o encarando, embora desejasse muito olhar para a parte que ele remexia), e depois de um tempo me provocando, retirou um pacote de plástico com alguns comprimidos azuis dentro. Eu, agora, olhava para as pílulas azuis.

- O que é? - indaguei, excitada, enquanto ficava de joelhos na poltrona.

Ele apenas continuou com o mesmo sorriso sacana (e embasbacado) e me disse, enquanto tirava um do saquinho, engolia, e me oferecia outro:

- E eu vou estragar a diversão?

Deixei ele botar o comprimido em minha boca enquanto tentava fazer seus olhos não desviarem dos meus. Eu estava no controle. Ele era meu. Ele faria o que eu mandasse, quando eu mandasse, porque ele queria me comer. Era essa a verdade pura e simples.

Ele sentou na poltrona encardida ao lado do sofá e eu me deitei, espreguiçando-se, enquanto observava as cores se multiplicarem diante de mim e me envolverem em ondas de calor comedidas até o momento em que não existiam mais.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Outsider

Depois de tanto tempo
Você se dá conta
Seus olhos ainda encaram
ombros alheios

Depois de diversas aventuras
você se percebe
fixando naquele mesmo ponto
naquele olhar desconhecido

Depois de muitas dúvidas
você tem certeza
das voltas que deu
e do marco zero ao qual voltou

Mudar não é fácil
Mais difícil é evoluir
E nesse meio tempo
você apenas continuou

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Coralina - a crise

Algo paradoxal é algo que se contradiz, como haviam lhe ensinado. Cora sabia disse. Cora entendia assim. Mas Cora não aceitava as coisas facilmente. Depois de tantas provações, deveria estar extática, absorvida em felicidade, correto? Contudo, depois de tanto pensar, de tanto querer entender, chegou à conclusão de estava passando por um fenômeno que nomeou "afogada em felicidade". Pode parecer besteira, mas as pessoas não foram feitas para serem felizes. Felicidade é um estado, como fome, sede, é passageiro, deve ser sentido, e pronto. Mas, nesse momento, nesse exato momento em que encarava a tela do facebook, ela notara que era uma pressão tão grande (interna e externa) para que se acalmasse, que sorvesse dessa tão falada felicidade, que ela se permitira o suficiente para abrir suas portas mais escuras, os cadeados mais complexos: sentimentos. Os mais indesejados e complexos sentimentos que vinha se protegendo ao longo de anos, e que esperavam qualquer oportunidade para emergir finalmente encontraram seu caminho. E ela não conseguia mais fechar. Ali mesmo, no trabalho, em frente à tela do facebook que mostrava um felino fazendo qualquer coisa cômica, ela soluçava, ela gritava de dor, ela ria histericamente, ela tremia de desgosto, ela esmurrava a mesa com tamanha intensidedade que os objetos iam caindo aos poucos, ela não comportava tantos sentimentos ao mesmo tempo.

- Cora, você tem algum objetivo pessoal, algo que você sempre esperou a vida toda, uma curiosidade subjetiva que lhe impulsione uma busca espiritual? - disse O Melhor Amigo.

- Sim.. eu.. eu quero sentir tudo.

- Como assim, amiga?

- Eu quero sentir tudo ao mesmo tempo. O sentimento. Aquele que gera todos os outros. A forma mais pura de sentir. Eu acho que se eu sentir tudo que há para se sentir em um momento único eu posso chegar à mais pura forma de sentir - respondi, com olhos arregalados, como se houvesse uma curiosidade doentia querendo ganhar o mundo, uma ganância sem fim.

Não. Não . NÃO. NÃOÇAOÇALÃOAÃO. É DEMAIS. EU NÃO CONSIGO. GRITAVA. ESPERNEAVA. NINGUÉM A CONSEGUIA CONTROLAR. Ela não respondia aos apelos dos colegas. Os homens não sabiam de onde vinha essa força que mesmo três pessoas não podiam conter. Era tudo uma grande imagem borrada do descontrole.

- Eu quero você. Eu quero sentir você. Eu te quero ao meu lado agora, sempre. - dizia em frases entrecortadas ao longo dos beijos e carícias, enquanto deitavam na cama, enquanto tiravam as roupas, enquanto se tocavam.

Mas era demais. Era muito forte. Era inconsequentemente incontrolável. Eram muitos "in"s. Eles não se tornaram um. Ela não soube como proceder, ela não soube amá-lo, ela não soube se amar. Ela o deixou só, e para sempre se arrependeu. Foi esse arrependimento. Ele lhe abatia agora. Ele lhe fazia fincar as unhas no carpete e contorcer no chão de dor.

- Eu não sei como consertar isso. Por favor, me diz o que eu fiz, como eu devo proceder, eu farei o que estiver ao meu alcance, o que eu tiver que fazer, só me aponta a direção, por favor, você não consegue começar a entender a sua importância na minha vida, a importância da gente, como um todo... - suplicava.

- ... *click* tu tu tu tu tu tu tu tu tu tu tu tu.

Escutou o barulho do telefone durante horas. Não sabia em que ponto errara, não conseguira cumprir o que era melhor em fazer, não conseguiu ajeitar as coisas, e para sempre perdera a promessa do que é eterno. Não sabia o que fazer, essa perda, essa dor de perda consciente de que não se podia consertar independente do que se fizesse, não era igual à morte, era igual a saber que você apenas não era suficiente. Era essa perda de si que a fazia rasgar as roupas de calor no meio da multidão que apenas assistia ao episódio como se vissem um filme da sessão da tarde.

- Como é que você pôde fazer isso comigo?! Depois de tudo que a gente já viveu, depois de tudo que eu te dei, de todo o eu que eu confiei nas suas mãos, por quê?! - dizia secamente, controlando o descontrole.

- Não foi minha intenção, foi apenas um teste. Foi uma falha minha. Eu erro. Eu sou humano. Eu não fiz nada demais. É um engano. Sou eu. Você me conhece. Você sabe quem eu sou.

- Eu... - à medida que eu falava os sentimentos já trancafiados vinham à garganta e me impediam de dizer sim. Depois de tantos enganos, depois de tanto sofrimento já resguardado, não se podia submeter a entregar-se novamente. Era perigoso demais. Podia perder a razão. - Eu não acho que eu sei.

Estava acontecendo. O que temera durante tanto tempo. O que passara tantos anos tentando controlar. Parara de gritar. Permanecera estática e encolhida no chão, procurando uma maneira de se recompor, procurando forças para se recompor. As pessoas se amontoavam cada vez mais.

- Eu tive vontade de lhe dar três tiros.
...
- Eu sinto muito... era para eu ter lhe protegido... Que espécie de mãe sou eu?!
...
- Não.
...
-Você tem certeza que é isso que você quer?
...
- Não posso ir ao cinema. Tô ocupada, tenho que ir.
...
- Eu não sei se posso me entregar novamente. Já fui muito machucado por você.
...

Quantos telefonemas me foram negados. Quantas pessoas me renegaram. Quantos sofrimentos teria de passar ainda até que pudesse alcançar a liberdade. Sim, liberdade. Felicidade não era suficiente. Felicidade era uma mera ilusão. Apenas mais um cadeado para deixar trancado o que há muito deveria ter se perdido no mundo. Quanto tempo?! Por favor, alguém, quanto tempo?!

É o fim. Será esse o fim? Será que é só isso? Deve ser. Por que eu esperaria algo diferente? Eu deveria só aceitar e dormir. Dormir e nunca mais acordar. Apenas descansar eternamente em uma grande inconsciência.

Piscou os olhos e estava na frente da tela do facebook. Seus colegas de trabalhos faziam muito barulho, empenhados em terminar o serviço o quanto antes para sair mais cedo e ir assistir ao jogo de futebol no bar da esquina. Ela continuava parada, assustada, encarando o gato que dançava. Respirou bem fundo. Fechou os olhos. Expirou. E postou um comentário em sua "wall": então, vamos tomar uma bera hoje à noite para comemorar?

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Coralina - a ressaca

Um caminhão inteiro. O maior caminhão que você já viu na vida ou ouviu falar em todas as lendas urbanas. Um caminhão tão grande e tão pesado que jamais passaria pela cabeça da galinha tentar atravessar a rua. Era como se esse caminhão houvesse passado por cima da cabeça de Cora, dado ré, e passado novamente. Ela abriu os olhos para a escuridão turva à sua frente pensando exatamente nessa imagem, a qual era lentamente ofuscada pela da galinha querendo desesperadamente colocar um ovo no meio da rua. E a dor vinha novamente, em ondas compridas e constantes. Ela tentou se concentrar no que havia a sua frente, tentando reconhecer o objeto, o lugar que se encontrava, quem sabe. 09:08. Nove e oito. Nove horas e oito minutos. NOVE HORAS E OITO MINUTOS. Saltou da cama como se a imagem do King Kong viesse à realidade. Calcinha. Sutiã. Calça. Jeans ou social? NÃO IMPORTA. Calça. Blusa. Dentes. Correr. E correu. Os saltos nas mãos, uma maça na mochila e uma escova de cabelo portátil, daquelas de hotel mesmo, no bolso. Quando chegou no hall de seu prédio passou pel'O Porteiro, que mal teve tempo de terminar o seu "Bom dia, Dona Cora..!", que ela respondeu, gritando "Desculpa, é que estou muito atrasada para uma reunião!". E estava. Marcara uma reunião às 0830 com um cliente que supostamente seria muito importante. Ou, pelo menos, como O Chefe havia lhe dito, "o cliente mais importante da empresa". E continuou com um enfático "NÃO SE ATRASE, OUVIU, CORA?". E ela respondeu que sim, embora sempre que ele lhe dirigisse a palavra com algo que não a interessasse, ela responderia que sim. Mas, não perderia a festa de seu melhor amigo, certo? Na verdade, a grande pergunta era como poderia ter ficado tão bêbada? Tomara apenas um coquetel de frutas! Nem sentira o gosto da vodka!

- Cuidado, garota! Quer se matar, é?! – disse um motorista de táxi que quase a atropelara.

Cora se assustou, porém continuou a andar. Havia atravessado a rua sem olhar e, no momento que estava chegando ao outro lado, teve um flash da noite passada e quase ia sendo atropelada. Lembrou do primeiro drink, do seu gosto doce, promissor, d’O Rapaz de Jeans, que a encarava insistentemente, como se fosse um pedaço qualquer de carne, e coçava o saco, como se isso a deixasse animada. Ok, ela não ficaria com O Rapaz de Jeans, mas o faria pensar como se estivesse intensamente interessada em seu olhar, hipnotizada pela sua própria coisificação. Faria exatamente isso, e conseguia até imaginá-lo falando com seus amigos.

- Tá vendo aquela mina ali? Tá na minha, brother. Completamente na minha. – diria com um risinho sacana na cara.

Esperaria atentamente enquanto seu ‘predador’ viesse em sua direção, buscar sua ‘presa’. Claro, tudo isso na cabeça dele. Porque cá entre nós, sabemos exatamente a quem cabe cada um desses papéis, e O Cara de Jeans não era o mais cotado a predador em qualquer situação que fosse. No momento em que ele se atravesse a tentar se aproximar com aquele inexcusável jeito de macho alfa, ela primeiro quebraria suas pernas com um desafinado e histérico grito “Ah, oi, AMIGÃN, tudo bom, LINDA?”, e veria sua expressão mudar para uma perplexidade desconcertante. Depois, continuaria com um “Então, como foi a noite com o BRIAN? Ouvi dizer que vocês ‘botaram pra quebrar’ (aspas incluídas, claro, com direito a uma piscada de olho mal-elaborada)!”, e conforme a expressão dele fosse se tornando mais perdida e as pessoas ao redor começassem a olhar com o sorrisinho de deboche próprio de “pessoas que não têm preconceito, mas...”, terminaria com um – porém, foi interrompida pel’O Melhor Amigo, que já a conhecia há bastante tempo para saber exatamente o que se passava na sua cabeça.

- Cora, meu amor, meu coração, você acha que dá pra passar uma noite sem executar seus planos malignos? – disse, com um falso tom de tranquilidade.

- Não.

- Cora!

- Tá, LINDO, ok. Mas é que você não viu o jeito como ele tava me olhando!

- Vi, querida, eu vi. Mas, não importa, porque ele namora A Dermatose. Olha lá!

Observei enquanto uma loira alta, muito magra, e, aparentemente, desprovida de roupas, pois a garota usava apenas uma das conhecidas saias-cinto, uma blusa folgada, transparente, e um sutiã de bolinhas, agarrava-se ao pescoço d’O Cara de Jeans e lançava a Cora um olhar de lado quase assassino. Isso somente fez com que Cora atentasse ainda mais para o que não conseguia deixar de notar toda vez que olhava em seu rosto: uma ferida no canto esquerdo de sua boca, razão pela qual recebera sua alcunha. Segundo ela, era uma pequena dermatose. Segundo o que eu sei, essa pequena dermatose estava lá desde que eu a vira pela primeira vez, três meses atrás.

- Você acha que foi ele quem passou pra ela, Cora? – disse O Melhor Amigo, com um pequeno tom de veneno, que só nós dois sabemos produzir.

Eu o olhei nos olhos e percebi que a resposta dele era igual à minha: “Claro”. Sorrimos maliciosamente, depois virei para pegar uma bebida.

- Você não vai trabalhar amanhã, Cora?

- Ah, vou! Mas, só mais um drink, que mal faz?

Cora finalmente chegou ao trabalho. Podia imaginar a cara d’O Chefe completamente vermelha, como um pimentão, no momento em que entrasse na sala de conferências. Podia visualizar seu olhar de “Você está demitida” enquanto preparava a apresentação. Isso é, se a deixassem sequer apresentar. Entrou no elevador e olhou para a tela que mostrava o andar e a temperatura do ambiente, apertou o último andar e teve outro flash.

O quinto copo. Quinto? Não, não, o sexto. Seis copos não faziam mal a ninguém, pensava consigo. Avistou O Melhor Amigo do outro lado do apartamento e foi cambaleante na sua direção, para dizer-lhe que ia embora. Nesse momento, percebeu que ele começara a beijar outro rapaz, e desistiu. Afinal, ele estava bem melhor que ela. Foi em direção ao elevador e entrou no cubículo. Quando as portas se fecharam e ela ia apertar o botão “P”, ficou extremamente nauseada e percebeu que necessitava tomar um ar. Então, apertou o botão do último andar, esperando chegar na cobertura. Tirou o salto ainda dentro do elevador e, quando as portas se abriram, subiu mais um lance de escada até chegar ao terraço. Abriu a porta com a boca salivando, esperando sentir o cheiro frio daquela noite tão faltosa.

Cora abriu a porta da sala de conferências com certo temor do que podia encontrar. A sala estava escura e O Cachinhos Dourados terminava sua apresentação em slides. Ótimo. Chegara no momento certo. O Chachinhos Dourados terminou e lhe passou o controle do retroprojetor com uma expressão de desgosto que não hesitou em demonstrar. Eu lhe sorri largamente. O papel de parede de standby do computador era uma grande lua cheia e amarelada que a fez ter outro flash da noite passada.

O vento frio em seu rosto lhe dava tamanha sensação de liberdade que, pela primeira vez em sua vida, amou aquela cidade. A cidade inteira, inclusive seus esgotos, sua obras inacabadas, seu governo inerte e, até mesmo, suas pessoas ignorantes. Amou todos eles enquanto rodopiava no topo de um prédio de vinte e três andares. Queria mais. Aproximou-se da borda da cobertura. Queria ver quão pequenas e ínfimas os transeuntes eram daquela altura. Sentou-se à borda despreocupadamente. Nada poderia dar errado em uma noite tão bonita, com uma lua tão linda... Lua cheia, luas dos amantes, pensou. Bullshit. Mostrou o cotoco para a lua como se ela fosse se sentir ameaçada e secar para minguante. Nada aconteceu, mas não importava, pois na sua cabeça ela não era mais cheia. Era minguante e ponto. Ficou um pouco tonta e retornou a mão para a borda, de forma a se equilibrar, mas sua mão escorregou no concreto molhado e ela acabou batendo o queixo com força na mureta. Não conseguia se mexer, mas via as luzes da cidade abaixo de si e percebia que seu corpo se movia lentamente em sua direção. Fechou os olhos e viu em sua cabeça a cena em que caía em cima do carro mais próximo da entrada do prédio, no térreo. Viu os vidros se estilhaçando, viu as pessoas gritando, viu tudo como se acompanhasse uma cena de filme na TV. No entanto, não sentiu mais nada.
Terminou a apresentação suando frio. Como sobrevivera? Como podia estar ali naquele momento? Será que... não estava ali? Será que tudo aquilo era um sonho? Será que ela realmente estava morta e o após-a-morte era apenas uma grande pegadinha do que você poderia ter vivido, mas não viveu, estando consciente (ou numa constante incerteza) do fato de estar morta? Acenderam as luzes e ela descobriu o olhar d’O Cliente, um olhar astuto, de quem sabe o que está fazendo. Ela também notou, apesar das mechas de cabelo tentarem esconder, olhos verdes que a analisavam. Ela já estava nervosa, mas aquele olhar a fazia tremer de outra forma, em outras partes. Ele levantou e foi em sua direção enquanto O Chefe conversava com os acompanhantes d’O Cliente.

- Tudo bem? – ele disse, em uma voz calma e relaxante.

- Ah.. sim.. – “agora, sim”, pensei comigo.

- É que você meio que ia perdendo o controle por um momento.

Empalideci. Anos e anos de máscaras e disfarces e, em apenas trinta minutos de apresentação, aquele rapaz, aquele estranho, era capaz de dizer o que eu estava sentindo? Eu deveria realmente ter morrido, porque isso não aconteceria comigo, jamais. Afastei qualquer pensamento de insegurança da cabeça, enchi o peito de ar e lhe respondi em uma voz de atendente de marketing.

- Não, Senhor! Eu jamais perderia o controle. Sou uma das funcionárias mais competentes da empresa! É só perguntar a’O Chefe! – quase gritei, numa falsa empolgação. O Chefe se limitou a me sorrir um sorriso de “temos que conversar”.

O Olhos Verdes demonstrava uma expressão de curiosidade e tristeza. Melancolia, talvez. Cora não sabia explicar direito, mas era uma expressão que podia ser facilmente confundida com pena. E Cora não era o tipo de garota que você deveria depositar pena. Ela acreditava nisso veementemente.

- Então, Senhor, tem algo mais que eu possa lhe ajudar, alguma dúvida que eu possa lhe tirar? – eu continuei, em um tom beirando a impaciência, querendo sair daquela situação o quanto antes para ir ao encontro d'O Melhor Amigo e tentar descobrir o que lhe acontecera.

Ele apenas me analisava e, no último momento antes de estender a mão para me cumprimentar, pude perceber que tentava esconder um sorriso quase... reptiliano. Ou quem sabe eram seus lábios finos e vermelh.. Não. Não importa. Era apenas um cliente. O Olhos Verdes era apenas um cliente.

Coralina - o nascimento

sabe aquele olhar? não, queridos, não o vulgo (e vulgar) olhar quarenta e três. estou falando do olhar perdido, aquele que lhe olha, lhe encara diretamente na mais profunda essência do seu ser e parece não lhe reconhecer como um igual, como uma pessoa, como alguém dotado de sentimentos. esse olhar. o que tem? era esse olhar que se concentrava na tela do computador. era assim que se encontrava Coralina. ela não tinha certeza muito bem do porquê de sua angústia, mas ela já havia lido sobre o assunto, "angústia existencial". todos diziam que passava, que era momentâneo, mas ela já sentira durante tantos anos que começou a pensar que ou os outros estavam extremamente equivocados ou ela estava profundamente doente. espera. doente, não. ela nunca ficava doente. errada. isso. ela estava profundamente errada. no meio de seus pensamento, foi abruptamente interrompida por um tapinha nas costas. O Chefe. ele a pegara em um momento de "divagação", e isso era ruim, muito ruim, já que ela sempre estava alegre e risonha. ele perguntaria se havia algo errado, se alguém havia morrido, e entraria em seu eu particular. isso não podia ser. se é particular é porque é privado, é seu, unicamente. não permitiria que isso ocorresse. mas, foi aí que se enganou, nesse seu pensar demais. pois a expressão d'O Chefe era a mesma daquelas pessoas que se dizem seus amigos, mas a qualquer suspeita de uma infelicidade, de um sentimento difícil passageiro, fazem aquela cara de não-estou-percebendo-nada e continuam com o assunto anterior, ou, no caso em questão, com o assunto seguinte.

- Cora, minha linda, você pode providenciar o arquivamento desses documentos para mim?

Coralina, já com a máscara mais popular, O Sorriso Branco, lhe responde em um tom amável que sim, mas sem lhe tirar os olhos da cara, incrédula com a situação. Não verdadeiramente incrédula, pois já havia passado por isso anteriormente, com outras pessoas. Mas, O Chefe, um homem tão íntegro (ou assim diziam), tão sincero (ou assim lhe informaram), tão, tão... igual (e era tudo que ela via). Não importa, pensou consigo enquanto retirava o grampo de um bloco de documentos. Eu tenho é que parar de pensar tanto, pensou alto.

- É o quê, Cora? - dessa vez era O Cachinhos Dourados. Sim, eu sei, que espécie de homem recebe o nome de O Cachinhos Dourados? Mas, você precisaria conhecê-lo. Ele não é tão másculo a ponto de caracterizá-lo como homem, nem tão feminino a ponto de lhe conceder o nome de Andrógina.

- Nada.. apenas pensei alto.

- Ah... ok.

Cora já havia beijado O Cachinhos Dourados. Curiosidade, sabe. É homem, não parece com homem, mas beija como ...? A resposta? Ela jamais saberia. Além disso tudo, O Cachinhos Dourados não beijava com a língua. Como se chama aquele outro tipo de beijo? Ah, beijo técnico. Realmente, o nome lhe serve. Frio.

- Quê isso, Cora?! Você tá dormindo o dia inteiro, cara! - ele continuou.

- Ah.. desculpa!

Eu tinha acabado de derrubar uma pilha de documentos que O Chefe havia me trazido. Era a inércia. (Ela sempre culpava a inércia). Comecei a juntar os papéis quando me deparei com uma folha interessante. Bem, não interessante no sentido mais legítimo da palavra, pois era uma folha igual às outras, só diferindo no nome no topo da página, seu nome. Leu um pouco mais e viu o nome d'O Cachinhos Dourados. Não estava entendendo direito (ou querendo entender), mas parecia que O Cachinhos Dourados havia requerido um procedimento administrativo para apurar ... ASSÉDIO SEXUAL POR PARTE DELA?! OI?! Levantei os olhos, abismada, deixando tanto o olhar perdido como O Sorriso Branco de lado. Aquele filho da mãe brincava com um de seus cachos. O Filho da Mãe. Sim, um bom nome. Esse, sim. No documento estava descrito, com detalhes, o dia em que havíamos nos beijado na escada do edifício do trabalho. Não me leve a mal, eu não sou linda, mas sou no mínimo desejável. E O Filho da Mãe quem havia me encurralado! Absurdo! Como ele pudera? E me veio apenas um pensamento: homens. E tudo estava explicado. Continuei a ler, e vi que o processo tinha sido arquivado porque eu não era sua superior. Não entendi muito, mas sabia que a palavra "arquivado" era um bom sinal. Bem, só quero deixar bem claro que o meu processo com meu mais novo conhecido, O Filho da Mãe, não estava sequer perto de arquivar.

Fui ao banheiro com minha bolsa, tirei meu batom vermelho e me olhei no espelho. Cabelos soltos. Check. Sombra. Check. Lápis. Check. Batom vermelho. Check. Como eu disse, não sou horrenda. Na verdade, me considero normal, embora minhas amigas sempre me digam que eu não fico com pessoas do meu nível e que eu deveria me envolver com pessoas da minha classe. Elas não são minhas amigas de verdade. Tenho cabelos castanhos, bem claros, sou morena e tenho olhos negros, muito negros, do tipo que você pode se ver neles. E aos machistas de plantão, não, não sou gostosa. Como eu disse, normal. Apesar de às vezes achar um pouco chato ter que comprar calças jeans um pouco mais largas devido ao tamanho do meu quadril. Que se lasque, eu sei seduzir. E era isso o que eu faria.

Ajeitei o vestido para que ficasse um pouco acima dos joelhos e mostrasse minhas pernas. Aproximei-me dele logo após o cheiro do perfume ter se consolidado em meu pescoço, deslizei a mão pelo seu ombro direito e cheguei perto de seu ouvido esquerdo, perguntando:

- Como tá a produção, querido?

Ele se assustou um pouco, mas logo após sentir o perfume em meu pescoço, seus hormônios juvenis bateram e eu esbocei um sorriso inconsciente no canto da boca que só pareceu deixá-lo mais... animado. Classic move.

- Tá indo, Cora. Tô quase no fim.

Deslizei a outra mão pela sua mesa e derrubei o telefone junto a minhas pernas.

- Desculpa! Eu sinto muito! - disse, em uma voz irritantemente feminina e afetada.

Ele se levantou prontamente e disse que não havia qualquer problema. Foi pegar o telefone e aproveitou para dar uma olhada demorada em minhas pernas. De cima a baixo. Mais um sorriso inconsciente. Mal percebeu ele que, enquanto isso, eu clicava em "Amor" no seu celular e sentia as chamadas acontecerem e culminarem em um inaudível "alô?". Continuei.

- Então, querido, você se lembra do ano passado? - deslizei o dedo por seus ombros finos, fazendo parecer que eram mais largos do que realmente eram. Ele regozijava.

- Hummm, lembro demais, Cora...

- Então, eu estava pensando - mais uma vez eu fazia a voz irritável.

- Ahhh, claro, meu amor. Quê que você acha de a gente ir a um bar depois daqui? - Ele salivava.

Eu me aproximei mais do seu rosto, ajeitando o cabelo levemente com uma das mãos atrás da orelhe.

- Com certeza, mas... e a sua namorada?

- Namorada?! Nããão, a gente terminou faz tempo!

Dessa vez quem regozijou foi eu, pois tinha uma amiga em comum com a namorada dele, e sabia, inclusive, que eles haviam noivado há menos de um mês. Sorri largamente. E decidi fechar com chave de ouro, enquanto via os segundos da ligação do celular dele correndo.

- Mal posso esperar pra sentir seus lábios quentes novamente. - Pensei comigo, sqn.

Virei-me e comecei a andar enquanto ele permanecia boquiaberto, tentando se encolher.

- Eu lhe encontro no bar da esquina mais tarde? - ele gritou enquanto eu ia embora.

Eu olhei de costas em sua direção e sorri. Ele também, mas por motivos diferentes. Fui para casa e dormi tão bem como não fazia há muito tempo.