Cora segurou o copo
gentilmente com a mão esquerda. Era um das velhas manias que tinha.
Era destra, mas tinha para si que se utilizasse sua mão esquerda,
traria mais sorte, pois tudo que era torto e diferente, na sua
cabeça, era melhor e mais bonito. Concepções de uma garota de 12
anos que cresceu com um pai ausente e uma mãe controladora. Mas, não
importava, porque estava levando um copo de água gelada para A Avó
Doce, que, apesar de amorosa, era ao mesmo tempo incapacitada de
demonstrar carinho normalmente. A vida lhe tinha sido muito dura. Aos
poucos, aprendera a receber, mas dar carinho... não, isso ainda era
muito improvável de se acontecer nessa vida. Era perigoso demais.
A Avó Doce recebera o
copo gelado com um sorriso triste, porém acolhedor. Um sorriso
marcado, sabe? De quem sabe como é A Dor, e do que Ela é capaz. Não
que A sentisse agora, mas porque sabia que Ela não tardava, e sempre
era dura.
Coralina sorriu em
resposta e deitou na rede próxima à d'A Avó Doce. Começou, então,
suas viagens infantis. No primeiro balanço, sonhou que era uma
guerreira. Sonhou acordada que podia invocar elementos e criaturas
místicas para lutar contra forças ulteriores, forças do próprio
mundo real, forças que mais tarde viriam lhe afligir de outra forma.
No segundo balanço, percebeu que A Avó Doce cochilava, e com seus
suspiros sonolentos, ela divagou para uma terra desconhecida, uma
terra de sonhos e possibilidades, onde o mundo se entortava ao seu
querer. Dessa vez, não estava mais acordada.
Cora caminhou por
pastos verdes, e sentiu em sua pele o vento orvalhado da manhã,
embora o sol lhe demonstrasse ser fim de tarde. Pulou em direção às
nuvens e nadou pelos rios dos três céus com os anjos, até que
escureceu, e tudo desapareceu, e só restou ela, em sua medíocre
insignificância, diante d'A Solidão. Sabia que estava sonhando,
sentia que seu corpo continuava parado, na rede, mas não conseguia
mais controlar o espaço conforme seus desejos. Fechou os olhos e se
esforçou, tentando acordar, mas nada acontecera. Foi quando lhe
surgiu uma serpente. Asquerosa, enorme, sibilante, serpente. Ela
levantou o corpo à altura só rosto de Cora e as duas se encararam.
Cora contemplou sua cor avermelhada e seu colarinho negro próximo ao
que corresponderia ao seu pescoço (se serpentes possuíssem
pescoço).
- O que você quer? -
Cora indagou, em uma voz trêmula, como se o simples fato de
indagá-la a fizesse atacar.
A serpente apertou os
olhos, em desdém. Cora tentou se retrair, mas seu corpo ainda
continuava paralisado.
- A pergunta,
garotinha, não é o que EU quero, mas o que VOCÊ quer.
Cora, confusa, tentou
compreender o significado da frase, mas não tivera muito tempo até
o animal se aproximar de sua perna esquerda e ir subindo e se
enroscando e sibilando e ameaçando, até que, de repente, não lhe
podia mais ver a cabeça, apenas o corpo vermelho como o céu das
manhãs de verão enroscado em sua perna. Finalmente, a serpente se
enroscou em seu pescoço e lhe encarou, mais perto que nunca. Cora
não podia mais falar, respirar, se mexer ou sequer pensar, pois o
medo lhe tomara e ela só conseguia ver os olhos da criatura.
- Então, criança,
diga-me, qual a sua decisão? - sibilou a serpente, em uma voz
tediosa, enquanto lhe apertava cada vez mais o corpo.
- Mas... o quê? -
reuniu forças para perguntar.
Impaciente, a serpente
lhe mostrou as presas e assumiu posição de bote. Estava ficando
ainda mais vermelha, e o medo de Cora apenas aumentava. Fechou,
então, os olhos, sem saber a que se referia a criatura, e apenas
assentiu, resignada, ao que quer que fosse.
Nesse momento, o animal
apertou ainda mais o seu corpo e, rapidamente, abocanhou seu ventre e
começou a lhe rasgar a carne, a lhe fluir o sangue, junto a seu
veneno impuro. No entanto, Cora não sentia dor. Pelo contrário,
estava extasiada. O prazer lhe corroía os sentidos. Não sabia o
porquê, mas se entregava à serpete como se fosse a única coisa que
lhe importasse naquele momento. O calor lhe tomava e se expandia para
além de seu corpo, para além do corpo da criatura, até os limites
do sonho. Ofegante, viu marcado em sua pele, ao longo de sua perna,
como tatuagem, os resquícios da serpente. Só que não estava mais
no plano dos sonhos. Era seu corpo. Era sua realidade, e percebia
tudo diferente ao seu redor. Na verdade, tudo estava igual, porém
diferente. Era quente. A serpente dentro de si ansiava e sibilava,
podia sentir perfeitamente. Era sua cúmplice.
Ao olhar para a rede ao
seu lado, A Avó Doce continuava deitada, mas não emitia qualquer
com. Cora a percebeu diferente. Levantou-se, observou sua silhueta, e
viu, Ela, em toda a sua Sabedoria, A Matriarca de sua família, e ao
seu lado a Dama das Damas, em seu longo vestido negro, a levar A
Matriarca para longe. Cora lhe olhou nos olhos, Ela lhe sorriu, mas
Cora nunca esteve tão amedrontada em sua existência. Cora assentiu
e se despediu d'A Matriarca.
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