sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Coralina - Aos doze

Cora segurou o copo gentilmente com a mão esquerda. Era um das velhas manias que tinha. Era destra, mas tinha para si que se utilizasse sua mão esquerda, traria mais sorte, pois tudo que era torto e diferente, na sua cabeça, era melhor e mais bonito. Concepções de uma garota de 12 anos que cresceu com um pai ausente e uma mãe controladora. Mas, não importava, porque estava levando um copo de água gelada para A Avó Doce, que, apesar de amorosa, era ao mesmo tempo incapacitada de demonstrar carinho normalmente. A vida lhe tinha sido muito dura. Aos poucos, aprendera a receber, mas dar carinho... não, isso ainda era muito improvável de se acontecer nessa vida. Era perigoso demais.

A Avó Doce recebera o copo gelado com um sorriso triste, porém acolhedor. Um sorriso marcado, sabe? De quem sabe como é A Dor, e do que Ela é capaz. Não que A sentisse agora, mas porque sabia que Ela não tardava, e sempre era dura.

Coralina sorriu em resposta e deitou na rede próxima à d'A Avó Doce. Começou, então, suas viagens infantis. No primeiro balanço, sonhou que era uma guerreira. Sonhou acordada que podia invocar elementos e criaturas místicas para lutar contra forças ulteriores, forças do próprio mundo real, forças que mais tarde viriam lhe afligir de outra forma. No segundo balanço, percebeu que A Avó Doce cochilava, e com seus suspiros sonolentos, ela divagou para uma terra desconhecida, uma terra de sonhos e possibilidades, onde o mundo se entortava ao seu querer. Dessa vez, não estava mais acordada.

Cora caminhou por pastos verdes, e sentiu em sua pele o vento orvalhado da manhã, embora o sol lhe demonstrasse ser fim de tarde. Pulou em direção às nuvens e nadou pelos rios dos três céus com os anjos, até que escureceu, e tudo desapareceu, e só restou ela, em sua medíocre insignificância, diante d'A Solidão. Sabia que estava sonhando, sentia que seu corpo continuava parado, na rede, mas não conseguia mais controlar o espaço conforme seus desejos. Fechou os olhos e se esforçou, tentando acordar, mas nada acontecera. Foi quando lhe surgiu uma serpente. Asquerosa, enorme, sibilante, serpente. Ela levantou o corpo à altura só rosto de Cora e as duas se encararam. Cora contemplou sua cor avermelhada e seu colarinho negro próximo ao que corresponderia ao seu pescoço (se serpentes possuíssem pescoço).

- O que você quer? - Cora indagou, em uma voz trêmula, como se o simples fato de indagá-la a fizesse atacar.

A serpente apertou os olhos, em desdém. Cora tentou se retrair, mas seu corpo ainda continuava paralisado.

- A pergunta, garotinha, não é o que EU quero, mas o que VOCÊ quer.

Cora, confusa, tentou compreender o significado da frase, mas não tivera muito tempo até o animal se aproximar de sua perna esquerda e ir subindo e se enroscando e sibilando e ameaçando, até que, de repente, não lhe podia mais ver a cabeça, apenas o corpo vermelho como o céu das manhãs de verão enroscado em sua perna. Finalmente, a serpente se enroscou em seu pescoço e lhe encarou, mais perto que nunca. Cora não podia mais falar, respirar, se mexer ou sequer pensar, pois o medo lhe tomara e ela só conseguia ver os olhos da criatura.

- Então, criança, diga-me, qual a sua decisão? - sibilou a serpente, em uma voz tediosa, enquanto lhe apertava cada vez mais o corpo.

- Mas... o quê? - reuniu forças para perguntar.

Impaciente, a serpente lhe mostrou as presas e assumiu posição de bote. Estava ficando ainda mais vermelha, e o medo de Cora apenas aumentava. Fechou, então, os olhos, sem saber a que se referia a criatura, e apenas assentiu, resignada, ao que quer que fosse.

Nesse momento, o animal apertou ainda mais o seu corpo e, rapidamente, abocanhou seu ventre e começou a lhe rasgar a carne, a lhe fluir o sangue, junto a seu veneno impuro. No entanto, Cora não sentia dor. Pelo contrário, estava extasiada. O prazer lhe corroía os sentidos. Não sabia o porquê, mas se entregava à serpete como se fosse a única coisa que lhe importasse naquele momento. O calor lhe tomava e se expandia para além de seu corpo, para além do corpo da criatura, até os limites do sonho. Ofegante, viu marcado em sua pele, ao longo de sua perna, como tatuagem, os resquícios da serpente. Só que não estava mais no plano dos sonhos. Era seu corpo. Era sua realidade, e percebia tudo diferente ao seu redor. Na verdade, tudo estava igual, porém diferente. Era quente. A serpente dentro de si ansiava e sibilava, podia sentir perfeitamente. Era sua cúmplice.


Ao olhar para a rede ao seu lado, A Avó Doce continuava deitada, mas não emitia qualquer com. Cora a percebeu diferente. Levantou-se, observou sua silhueta, e viu, Ela, em toda a sua Sabedoria, A Matriarca de sua família, e ao seu lado a Dama das Damas, em seu longo vestido negro, a levar A Matriarca para longe. Cora lhe olhou nos olhos, Ela lhe sorriu, mas Cora nunca esteve tão amedrontada em sua existência. Cora assentiu e se despediu d'A Matriarca.

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