sábado, 3 de agosto de 2013

Desde criança, Coralina nunca fora uma boa dançarina. Muito cedo, sua mãe lutara contra seus calcanhares diversas batalhas, mas no momento em que chegava o dia da apresentação, eles simplesmente se recusavam a trabalhar. Ah, sim: sua mãe era bailarina. Então, não importava quantos pliés fizesse, ou quantos rodopios desse, nunca eram (seriam) suficientes.
Hoje, depois de tantos anos almejando a liberdade, Cora faria dezoito às 21:12 (leia-se vinte-e-uma-hora-e-doze-minutos, a.k.a., a hora mais esperada de sua vida, uma vez que acordara às cinco. Sim, cinco-da-manhã).  Tinha apenas uma certeza, às 21:12:01 estaria pondo o pé fora de casa para não mais voltar.
Porém, sua mãe preparara uma surpresa, nesse dia, às 21:00: uma apresentação. Claro, ela não poderia deixar de estar sob a luz dos holofotes, nem mesmo no dia do aniversário de sua filha, principalmente nesse dia. Então, Cora tomara uma decisão: enquanto tu vens às 21:00, eu já terei ido há muito. Chegou em casa, juntou seus pertences, o dinheiro que guardara durante tantos anos, e parou, em frente à porta, prestes a fazer a melhor ou a pior decisão de toda a sua vida.
Para que entendam, é melhor contextualizar um pouco. Sua casa era normal, não lhe faltava nada, ia à escola, entrara na universidade há pouco, porém a velha era um INFERNO. Assim, MESMO. Tanto, que seu pai abandonara as duas há muito e toda a família já havia se intrigado com ela, deixando Cora sozinha com esse martírio, o martírio de ser sua filha. “Cora, meu amor, você pode lavar os pratos, por favor?! Eu vou subindo com o Daniel, porque o jantar que você preparou nos deixou muito cheios.”, “Cora, minha linda, você pode lavar meus vestidos? Eu sei que só o que está sujo é o que usei para ir ao baile da prefeitura ontem, mas amanhã tem um na casa do governador, e eu ainda não decidi qual usar! Todos devem estar cheirosos, caso eu escolha um em cima da hora, não acha?”, “Cora, você pode lavar o banheiro?”, “Cora, arrume meu quarto.”, “Cora, lave as cuecas do Carlos!”. Cora, se manda.
Da janela da porta podia ver o vizinho novo da frente jogando baseball com seu irmão mais novo. Estrangeiros. Era só o que essa maldita cidade precisava, estrangeiros tomando de conta do espaço. Respirou fundo, pôs a mão na maçaneta, e girou. A vida começa... agora.
Nesse momento, ela viu que o mundo se movia em câmera lenta. Por algum motivo, ela sentia que a bola ia em sua direção, mas não podia fazer nada, era tarde demais. Sentiu uma pancada e apagou.
Quando acordou, a cara de sua mãe era tudo que conseguia ver. Inferno, devia estar no inferno. Vai ver que o negócio de honrar pai e mãe realmente era verdade. A garganta apertou, e não se segurou: vomitou todo o almoço. Na cara de sua mãe.
- AHHHHHHHHHHHHHHHH! – gritou histericamente em uma voz fina e irritante.
Cora se levantou devagar e viu que várias pessoas bem vestidas a observavam, com olhares preocupados. Sua bolsa. ONDE ESTAVA SUA BOLSA? TODO O DINHEIRO ESTAVA LÁ. Se virou e viu que a bolsa estava perto de si. Agarrou-se a ela com as forças que tinha, tentando entender o que se passara. Foi aí que lembrou da bolsa de baseball. Sua mãe continuava com o drama, como se houvesse ácido correndo sua carne, e Marcos, seu mais novo namorado que constantemente estava esbarrando sua mão na bunda de Cora, começou a lhe alisar o rosto e perguntar se ela estava bem. Cora somente assentiu com a cabeça, sentindo agora a dor latejante em sua têmpora esquerda.
Quando sua mãe finalmente parou de gritar e lavou o rosto, Cora já estava na sala de estar (ainda firmemente agarrada à sua bolsa), com todos os outros convidados. Eles pareciam muito tensos, desconcertados, Cora pensou que eles não deveriam saber se lhe chamavam uma ambulância ou lhe davam parabéns.
- Então, meu amor, você está melhor? Eu já posso me aproximar de você? Tem certeza que não vai mais vomitar? – disse sua mãe, em um tom de desgosto.
Cora a olhou, sem conseguir esconder a pena. Uma mulher tão medíocre, tão mesquinha, que jamais seria capaz de encontrar a felicidade. Assentiu com a cabeça, e a cena começou.
- Ó, minha querida, eu estava tão preocupada! Você não consegue imaginar o meu sofrimento quando cheguei e vi meu bebê caído no chão, inconsciente. Quase caio eu, junto de você! – recitou, dramaticamente, como se tivesse pensado bastante no que diria quando me encontrou, antes de chamar qualquer ajuda. Os convidados pareciam gostar do show, e ela regozijava. Eu, que não tenho paciência, desvencilhei-me de seus braços e me levantei, um pouco cambaleante, sendo amparada por Marcos, mas recuperando o equilíbrio logo após e puxando meu braço de suas mãos.
- Eu estou bem, Valdelice. Mas, tenho que sair, agora. Tchau.
Nesse momento, a mãe a puxou pelo braço e lhe fixou o olhar.
- Acho melhor você se sentar, Cora. Vai ter uma apresentação e...
- Não, Valdelice, eu não terei tempo pra ver a apresentação. – cortei, resoluta.
- Mas, minha querida! Você não precisa se preocupar. Já guardei todas as roupas sujas que você tinha nessa mochila. Você tem todo o tempo do mundo. – ela sorriu, maliciosamente, e eu embranqueci. Minhas mãos correram para minha mochila e eu pude sentir, em minha alma: vazio. Meus olhos se encheram de lágrimas, e ela continuou – Porque você não sobe e põe seu collant, todos estão ansiosos para ver você dançar. – o golpe de misericórdia. Eu subi rapidamente, para que ninguém visse as lágrimas que escorriam involuntariamente.
Cada peça do collant que eu vestia me lembrava de diversos recitais que ela me inscrevera contra minha vontade e me fazia ranger os dentes de ódio que se acumulava. No fim, as sapatilhas. As sapatilhas que ela usara em sua última peça, quando caiu e danificou um tendão. Deu-me de presente no dia da minha primeira apresentação. Amarrei os laços e desci, pisando firme, meus calcanhares já travando. Ao chegar na sala de estar, todos já estavam acomodados, e Valdelice esta vestida, também.
- Vamos, minha querida. Hoje você é uma mulher. Hoje, sua mãe lhe ensinará a última lição. Uma lição que só pode ser ensinada por meio da dança. Uma lição sobre o mundo. – disse, com um olhar frio.



Uma lição sobre o mundo?! Por favor, aquela vadia vinha me atormentando durante anos e agora queria me ensinar uma lição sobre o mundo me humilhando na frente de todos os seus amigos e me rebaixando em público. POIS QUE SE FODA. Eu tinha uma coisa ou duas que sempre quis ensinar a ela, e estava preparada pra isso.
Fiquei em frente ao espelho da sala para ajeitar meus cabelos. Cachos são sempre difíceis de se lidar na dança. Eles insistem em não lhe obedecer. Prendi-os da melhor forma que pude e me preparei. Quando a música começou a tocar, eu percebi: era o seu número. O número que ela passara quase trinta anos dançando. Fuck. Mas, não importa. Eu já estava nessa, eu daria meu melhor.
Ela fez a primeira sequência de movimentos. Plié. Rodopio. Rodopio. Plié encarpado. Era agora. Tentei sentir meus calcanhares, mas não os sentia. Isso não era bom. Não mesmo. Todos me observavam. Eu ficava cada vez mais nervosa. A música continuava. Meu momento passaria se eu apenas não me movesse, e logo. Lembrei de minha primeira apresentação. O nervosismo, as pessoas analisando cada músculo do meu corpo, o sorriso malicioso no olhar de minha mãe. Fechei os olhos. Escutei meu corpo. Minhas circulações. Meu coração. Tudo estava em um ritmo único, só meu... mas, havia algo mais. Era música! Era a música! Um violino chorou em meu ouvido esquerdo e meus braços lhe responderam abrindo as asas. Um violoncelo sussurrou em meu ouvido direito, e minhas pernas lhe responderam com uma contração simultânea. Plié. Quando o piano iniciou a chamar meu nome, todo o meu corpo se contorceu e se desdobrou com seu chamado, liberando uma energia que a fez rodar, em êxtase. Rodopio. E, assim continuou. A cada instrumento, seu novo chamado, um movimento quase calculado. Ela dançou todo o número de olhos fechados e, quando finalmente os abriu, percebeu que todos a encaravam, boquiabertos. Ela estava calma, centrada na última pose, sem mover um músculo, e demonstrando uma paz em seus olhos que quase a colocavam em um outro plano. A música havia parado. Tudo havia permanecido imóvel. Era como se ninguém respirasse no recinto. Não via sua mãe. Ela não importava agora, pois o centro dos pensamentos de todas aquelas pessoas era ela, Coralina, a mulher. Desfez a pose e fez reverência, em agradecimento a seus expectadores. O mundo voltou a se mover. Todos aplaudiram e assobiaram como se tivessem acabado de testemunhar uma apresentação da sua grande inspiração, Svetlana Zakharova, a estrela do ballet Bolshoi.

Cora sorriu. Sua mãe não movera um músculo ainda. O vinil d’O Corsário continuava rodando na vitrola, mudo, assim como Valdelice.

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