Desde criança, Coralina nunca fora uma boa dançarina. Muito
cedo, sua mãe lutara contra seus calcanhares diversas batalhas, mas no momento
em que chegava o dia da apresentação, eles simplesmente se recusavam a
trabalhar. Ah, sim: sua mãe era bailarina. Então, não importava quantos pliés
fizesse, ou quantos rodopios desse, nunca eram (seriam) suficientes.
Hoje, depois de tantos anos almejando a liberdade, Cora
faria dezoito às 21:12 (leia-se vinte-e-uma-hora-e-doze-minutos, a.k.a., a hora
mais esperada de sua vida, uma vez que acordara às cinco. Sim,
cinco-da-manhã). Tinha apenas uma
certeza, às 21:12:01 estaria pondo o pé fora de casa para não mais voltar.
Porém, sua mãe preparara uma surpresa, nesse dia, às 21:00:
uma apresentação. Claro, ela não poderia deixar de estar sob a luz dos
holofotes, nem mesmo no dia do aniversário de sua filha, principalmente nesse
dia. Então, Cora tomara uma decisão: enquanto tu vens às 21:00, eu já terei ido
há muito. Chegou em casa, juntou seus pertences, o dinheiro que guardara
durante tantos anos, e parou, em frente à porta, prestes a fazer a melhor ou a
pior decisão de toda a sua vida.
Para que entendam, é melhor contextualizar um pouco. Sua
casa era normal, não lhe faltava nada, ia à escola, entrara na universidade há
pouco, porém a velha era um INFERNO. Assim, MESMO. Tanto, que seu pai
abandonara as duas há muito e toda a família já havia se intrigado com ela,
deixando Cora sozinha com esse martírio, o martírio de ser sua filha. “Cora,
meu amor, você pode lavar os pratos, por favor?! Eu vou subindo com o Daniel,
porque o jantar que você preparou nos deixou muito cheios.”, “Cora, minha
linda, você pode lavar meus vestidos? Eu sei que só o que está sujo é o que
usei para ir ao baile da prefeitura ontem, mas amanhã tem um na casa do
governador, e eu ainda não decidi qual usar! Todos devem estar cheirosos, caso
eu escolha um em cima da hora, não acha?”, “Cora, você pode lavar o banheiro?”,
“Cora, arrume meu quarto.”, “Cora, lave as cuecas do Carlos!”. Cora, se manda.
Da janela da porta podia ver o vizinho novo da frente
jogando baseball com seu irmão mais novo. Estrangeiros. Era só o que essa
maldita cidade precisava, estrangeiros tomando de conta do espaço. Respirou
fundo, pôs a mão na maçaneta, e girou. A vida começa... agora.
Nesse momento, ela viu que o mundo se movia em câmera lenta.
Por algum motivo, ela sentia que a bola ia em sua direção, mas não podia fazer
nada, era tarde demais. Sentiu uma pancada e apagou.
Quando acordou, a cara de sua mãe era tudo que conseguia
ver. Inferno, devia estar no inferno. Vai ver que o negócio de honrar pai e mãe
realmente era verdade. A garganta apertou, e não se segurou: vomitou todo o
almoço. Na cara de sua mãe.
- AHHHHHHHHHHHHHHHH! – gritou histericamente em uma voz fina
e irritante.
Cora se levantou devagar e viu que várias pessoas bem
vestidas a observavam, com olhares preocupados. Sua bolsa. ONDE ESTAVA SUA
BOLSA? TODO O DINHEIRO ESTAVA LÁ. Se virou e viu que a bolsa estava perto de
si. Agarrou-se a ela com as forças que tinha, tentando entender o que se
passara. Foi aí que lembrou da bolsa de baseball. Sua mãe continuava com o
drama, como se houvesse ácido correndo sua carne, e Marcos, seu mais novo
namorado que constantemente estava esbarrando sua mão na bunda de Cora, começou
a lhe alisar o rosto e perguntar se ela estava bem. Cora somente assentiu com a
cabeça, sentindo agora a dor latejante em sua têmpora esquerda.
Quando sua mãe finalmente parou de gritar e lavou o rosto,
Cora já estava na sala de estar (ainda firmemente agarrada à sua bolsa), com
todos os outros convidados. Eles pareciam muito tensos, desconcertados, Cora
pensou que eles não deveriam saber se lhe chamavam uma ambulância ou lhe davam
parabéns.
- Então, meu amor, você
está melhor? Eu já posso me aproximar de você? Tem certeza que não vai mais
vomitar? – disse sua mãe, em um tom de desgosto.
Cora a olhou, sem conseguir esconder a pena. Uma mulher tão
medíocre, tão mesquinha, que jamais seria capaz de encontrar a felicidade. Assentiu
com a cabeça, e a cena começou.
- Ó, minha querida, eu estava tão preocupada! Você não
consegue imaginar o meu sofrimento quando cheguei e vi meu bebê caído no chão,
inconsciente. Quase caio eu, junto de você! – recitou, dramaticamente, como se
tivesse pensado bastante no que diria quando me encontrou, antes de chamar
qualquer ajuda. Os convidados pareciam gostar do show, e ela regozijava. Eu,
que não tenho paciência, desvencilhei-me de seus braços e me levantei, um pouco
cambaleante, sendo amparada por Marcos, mas recuperando o equilíbrio logo após
e puxando meu braço de suas mãos.
- Eu estou bem, Valdelice. Mas, tenho que sair, agora.
Tchau.
Nesse momento, a mãe a puxou pelo braço e lhe fixou o olhar.
- Acho melhor você se sentar, Cora. Vai ter uma apresentação
e...
- Não, Valdelice, eu não terei tempo pra ver a apresentação.
– cortei, resoluta.
- Mas, minha querida! Você não precisa se preocupar. Já
guardei todas as roupas sujas que você tinha nessa mochila. Você tem todo o
tempo do mundo. – ela sorriu, maliciosamente, e eu embranqueci. Minhas mãos
correram para minha mochila e eu pude sentir, em minha alma: vazio. Meus olhos
se encheram de lágrimas, e ela continuou – Porque você não sobe e põe seu collant, todos estão ansiosos para ver
você dançar. – o golpe de misericórdia. Eu subi rapidamente, para que ninguém
visse as lágrimas que escorriam involuntariamente.
Cada peça do collant que eu vestia me lembrava de diversos recitais que ela me
inscrevera contra minha vontade e me fazia ranger os dentes de ódio que se
acumulava. No fim, as sapatilhas. As sapatilhas que ela usara em sua última
peça, quando caiu e danificou um tendão. Deu-me de presente no dia da minha
primeira apresentação. Amarrei os laços e desci, pisando firme, meus
calcanhares já travando. Ao chegar na sala de estar, todos já estavam
acomodados, e Valdelice esta vestida, também.
- Vamos, minha querida. Hoje você
é uma mulher. Hoje, sua mãe lhe ensinará a última lição. Uma lição que só pode
ser ensinada por meio da dança. Uma lição sobre o mundo. – disse, com um olhar
frio.
Uma lição sobre o mundo?! Por
favor, aquela vadia vinha me atormentando durante anos e agora queria me
ensinar uma lição sobre o mundo me humilhando na frente de todos os seus amigos
e me rebaixando em público. POIS QUE SE FODA. Eu tinha uma coisa ou duas que
sempre quis ensinar a ela, e estava preparada pra isso.
Fiquei em frente ao espelho da
sala para ajeitar meus cabelos. Cachos são sempre difíceis de se lidar na
dança. Eles insistem em não lhe obedecer. Prendi-os da melhor forma que pude e
me preparei. Quando a música começou a tocar, eu percebi: era o seu número. O
número que ela passara quase trinta anos dançando. Fuck. Mas, não importa. Eu
já estava nessa, eu daria meu melhor.
Ela fez a primeira sequência de
movimentos. Plié. Rodopio. Rodopio. Plié encarpado. Era agora. Tentei sentir
meus calcanhares, mas não os sentia. Isso não era bom. Não mesmo. Todos me
observavam. Eu ficava cada vez mais nervosa. A música continuava. Meu momento
passaria se eu apenas não me movesse, e logo. Lembrei de minha primeira
apresentação. O nervosismo, as pessoas analisando cada músculo do meu corpo, o
sorriso malicioso no olhar de minha mãe. Fechei os olhos. Escutei meu corpo.
Minhas circulações. Meu coração. Tudo estava em um ritmo único, só meu... mas,
havia algo mais. Era música! Era a música! Um violino chorou em meu ouvido
esquerdo e meus braços lhe responderam abrindo as asas. Um violoncelo sussurrou
em meu ouvido direito, e minhas pernas lhe responderam com uma contração simultânea.
Plié. Quando o piano iniciou a chamar meu nome, todo o meu corpo se contorceu e
se desdobrou com seu chamado, liberando uma energia que a fez rodar, em êxtase.
Rodopio. E, assim continuou. A cada instrumento, seu novo chamado, um movimento
quase calculado. Ela dançou todo o número de olhos fechados e, quando
finalmente os abriu, percebeu que todos a encaravam, boquiabertos. Ela estava
calma, centrada na última pose, sem mover um músculo, e demonstrando uma paz em
seus olhos que quase a colocavam em um outro plano. A música havia parado. Tudo
havia permanecido imóvel. Era como se ninguém respirasse no recinto. Não via
sua mãe. Ela não importava agora, pois o centro dos pensamentos de todas
aquelas pessoas era ela, Coralina, a mulher. Desfez a pose e fez reverência, em
agradecimento a seus expectadores. O mundo voltou a se mover. Todos aplaudiram
e assobiaram como se tivessem acabado de testemunhar uma apresentação da sua
grande inspiração, Svetlana Zakharova, a estrela do ballet Bolshoi.
Cora sorriu. Sua mãe não movera
um músculo ainda. O vinil d’O Corsário continuava rodando na vitrola, mudo,
assim como Valdelice.
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